Com tarifas sobre a China e novo status sanitário à vista, Brasil vê janela histórica para consolidar liderança nas exportações de carne
As tensões comerciais entre Estados Unidos e China reacenderam uma dinâmica que o Brasil conhece bem: quando gigantes brigam, países periféricos podem colher os frutos. No caso do agronegócio brasileiro, essa máxima ganha contornos de oportunidade estratégica. A recente retaliação chinesa às tarifas impostas por Donald Trump sobre produtos agrícolas americanos pode significar um impulso decisivo para as exportações brasileiras de carne, milho, algodão, soja e amendoim. Paralelamente, a iminente conquista do status de país livre da febre aftosa sem vacinação abre portas para mercados antes inacessíveis, como o Japão — terceiro maior importador mundial de carne bovina. Combinadas, essas mudanças projetam o Brasil como ator central no novo tabuleiro geopolítico da segurança alimentar global.
Quando a guerra tarifária alimenta novos mercados
No dia 10 deste mês, a China respondeu às políticas protecionistas de Donald Trump com a imposição de tarifas de 10% a 15% sobre produtos agrícolas dos EUA, incluindo soja, sorgo, carne bovina, frango, trigo, milho e algodão. A medida, de forte impacto para os produtores americanos, representa uma janela de oportunidades para o Brasil, que já figura como parceiro comercial prioritário do gigante asiático.
A tributarista Priscila Ziada Camargo Fernandes, especialista em ativos do setor agro no escritório Ernesto Borges Advogados, aponta que há expectativa de valorização das commodities brasileiras, embora alerte para a necessidade de cautela: “O impacto real ainda precisa ser acompanhado com o fim da colheita da safra. Mas a tendência é que, com a depreciação dos preços nos EUA, o Brasil fortaleça suas cotações”.
Mariana Inocente P. Guimarães, gerente de exportação para a Ásia da Ramax Group, destaca que a carne bovina brasileira, proveniente de gado de pasto, atende a um nicho diferente do americano — baseado em animais de confinamento — e que a demanda chinesa deve crescer: “Mesmo sendo nichos distintos, a redução do volume americano vai aumentar a procura pela carne bovina brasileira”, afirma.
Ainda mais promissoras são as expectativas para frango e carne suína, cujas exportações devem se intensificar com a diminuição da oferta norte-americana. Essa mudança de fluxo comercial também favorece segmentos como o do amendoim. Segundo Rodrigo Chitarelli, CEO da CRAS Brasil, a taxação americana sobre países como México e Canadá pode direcionar novas demandas para o Brasil e a Argentina, especialmente num ano de supersafra, com aumento de 40% na área plantada.
O dilema da competitividade na pecuária bovina
Apesar das perspectivas positivas, o setor pecuário brasileiro enfrenta desafios estruturais. A limitação do rebanho qualificado para exportação — com exigência de abate de bovinos de até 30 meses — somada à redução de pastagens (substituídas por culturas mais lucrativas), compromete a competitividade frente a mercados exigentes como o chinês. Hoje, apenas 30% da produção nacional de carne bovina é destinada à exportação. A margem de lucro, comprimida pelo custo do boi gordo e a pressão dos frigoríficos, agrava ainda mais o cenário.
Em uma análise mais ampla, é impossível ignorar que as dificuldades enfrentadas pelo Brasil não se limitam à logística e à sanidade. Elas se conectam a uma lógica de desenvolvimento baseada na primarização da economia e na dependência de mercados externos — um dilema histórico, apontado por autores como Celso Furtado e José de Souza Martins. O salto do país para novos patamares de exportação exige mais do que ganhos conjunturais; exige um projeto estratégico de longo prazo.
A nova fronteira: Japão e o selo sanitário internacional
O segundo grande trunfo brasileiro no xadrez agropecuário global está prestes a se confirmar: o reconhecimento, pela Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), do Brasil como país livre da febre aftosa sem vacinação. Segundo Pedro de Camargo Neto, responsável por abrir o mercado japonês à carne suína brasileira, a nova classificação deve cair como peça-chave nas negociações com o Japão, país que já importa aves e suínos brasileiros e que há 30 anos impõe restrições à carne bovina nacional.
Roberto Perosa, presidente da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne), afirma que as exigências técnicas e sanitárias já foram superadas, faltando apenas a decisão política do governo japonês. O mercado nipônico movimenta 720 mil toneladas por ano e paga preços entre os mais altos do mundo. Atualmente, 80% desse volume é suprido por Austrália e Estados Unidos, cujos rebanhos enfrentam retração histórica — nos EUA, está no nível mais baixo desde a década de 1950.
Segundo dados do IBGE, o Brasil produziu, em 2024, 10,2 milhões de toneladas de carne bovina — um recorde histórico — e exportou 2,89 milhões de toneladas, gerando US$ 12,87 bilhões em receita. No entanto, ainda está fora de 30% dos mercados mais bem remunerados. A entrada no Japão abriria portas para outros mercados estratégicos da Ásia, como Coreia do Sul, Vietnã, Taiwan e Turquia — todos com potencial para diversificar os destinos da carne brasileira.
Contudo, os obstáculos diplomáticos e as exigências sanitárias dos importadores — que variam entre avaliações por frigorífico, por região ou por país — exigem do Brasil uma diplomacia técnica e comercial sofisticada. O Japão, por exemplo, já se preparava para autorizar importações apenas dos estados livres de aftosa. Com a nova classificação sanitária, deverá avaliar o país como um todo.
O papel do Brasil no sistema alimentar global
O momento vivido pelo agro brasileiro remete à reflexão proposta por Amartya Sen em Desenvolvimento como Liberdade: a segurança alimentar e a soberania dos países dependem, não apenas de produção, mas de acesso, distribuição e justiça nas trocas globais. Nesse sentido, o Brasil, ao ampliar sua presença no comércio internacional de carnes, assume uma responsabilidade que ultrapassa os limites econômicos — implica compromissos ambientais, sanitários e sociais.
A expansão de mercados não pode se dissociar da sustentabilidade, do bem-estar animal e da proteção ao meio ambiente. A pressão internacional por critérios ESG (ambientais, sociais e de governança) se intensifica, e o Brasil, como potência agroexportadora, terá de responder à altura.
Oportunidade histórica e responsabilidade global
Entre tarifas retaliatórias, reconhecimento sanitário internacional e a diplomacia presidencial, o Brasil está diante de uma encruzilhada estratégica. De um lado, ganha fôlego com o vácuo deixado pelos EUA no fornecimento à China. De outro, aproxima-se de mercados de alta rentabilidade, como o Japão. Mas a consolidação como potência global do agro exigirá mais que boa colheita: exigirá estratégia, planejamento e, sobretudo, um compromisso firme com o desenvolvimento sustentável e democrático.