Unidades enfrentam falta de médicos, escassez de medicamentos e longas esperas
No último dia de março, mais de 4,7 mil pessoas buscaram atendimento nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Campo Grande (MS), um salto de 33% em relação ao mês anterior. O caos instaurado — filas intermináveis, pacientes deitados no chão, falta de medicamentos e profissionais sobrecarregados — não é apenas um pico emergencial em tempos de doenças respiratórias: é o reflexo de um sistema de saúde cronicamente debilitado, marcado por políticas públicas desarticuladas, subfinanciamento e gestão ineficaz.
A crise vivida hoje em Campo Grande é mais uma página no histórico de negligência à saúde pública no Brasil. Desde a Constituição de 1988, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) como um direito universal, o país avançou em cobertura, mas patina em infraestrutura e financiamento. Dados do Conselho Federal de Medicina (CFM) mostram que, em 2023, o investimento per capita em saúde pública no Brasil foi de apenas R$ 1.661 por ano — cerca de R$ 138 mensais por cidadão. Um valor insuficiente para sustentar um sistema que atende mais de 150 milhões de brasileiros.
A situação atual em Campo Grande remete a essa lógica: um SUS que resiste graças à dedicação de seus profissionais, mas que opera em constante estado de contingência. Segundo a secretária municipal de Saúde, Rosana Leite, “a média de atendimentos varia entre 2,5 mil a 3 mil diários, mas no último dia de março quase atingimos 5 mil”. Em números absolutos, foram 1,2 mil pessoas a mais do que no último dia de fevereiro — aumento de 33,71%.
Um sistema no limite: números que gritam
As dez UPAs da capital sul-mato-grossense registraram, em um único dia, filas que beiram o inaceitável. A UPA Universitária, a mais sobrecarregada, atendeu 739 pessoas no dia 31/03 — quase o triplo da capacidade ideal. No mesmo período, a unidade Leblon atendeu 652 pessoas, mesmo enfrentando a falta de pelo menos cinco medicamentos, segundo denúncia apurada pelo g1. A Guarda Civil Metropolitana foi acionada para conter a tensão.
Na última semana de março, o total de atendimentos passou de 28 mil, um crescimento de 13% em relação à semana anterior. A superlotação é acompanhada da precarização dos atendimentos: pacientes como Nathiele Dias, 22 anos, relataram esperar mais de 4 horas por atendimento. “A UPA estava extremamente lotada, com pessoas esperando até deitadas no chão”, disse ao site.
Diagnóstico de uma falência institucional
A sobrecarga de atendimento escancara um colapso que é mais estrutural do que sazonal. “A demanda é muito acima da possibilidade de se fazer um atendimento adequado”, afirmou o presidente do Sindicato dos Médicos de Mato Grosso do Sul, Marcelo Santana. Os profissionais da linha de frente estão esgotados — e mal amparados.
Hoje, apenas 169 médicos atendem nos plantões da rede municipal. A Prefeitura anunciou a convocação emergencial de 56 novos médicos, além de técnicos de enfermagem e enfermeiros aprovados em concurso. Mas o socorro tardio é paliativo. A rotatividade e o não comparecimento de convocados demonstram a fragilidade dos mecanismos de reposição de pessoal, além do desinteresse crescente pela medicina pública em razão das más condições de trabalho.
Segundo a professora Ligia Bahia, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “a crônica desvalorização da atenção primária e a aposta em modelos de privatização progressiva da saúde pública têm criado gargalos que se repetem em ciclos de caos”.
O sintoma da desigualdade: quem adoece mais, espera mais
Não se pode desconsiderar o recorte social e político desse cenário. A superlotação das UPAs atinge majoritariamente a população de baixa renda, dependente exclusivamente do SUS. É nas periferias que as arboviroses, asma, crises de ansiedade e outras condições agravadas pela pobreza encontram terreno fértil.
O caso de Gevanilson Cordeiro, 46 anos, é simbólico. Após duas tentativas frustradas de conseguir atendimento psiquiátrico na UPA Tiradentes, ouviu que “não estão marcando consulta para nenhuma especialidade”. Crises de saúde mental, que cresceram no Brasil em 40% desde a pandemia, seguem sem resposta no modelo atual de saúde pública.
Um problema de saúde, um desafio de política pública
Diante desse cenário, a Câmara Municipal convocou a secretária de Saúde para discutir soluções. Parlamentares como Fábio Rocha (União Brasil) e Beto Avelar (PP) reconheceram a gravidade da situação e pediram paciência à população — mas paciência não cura infecção nem substitui antibiótico. A falta de medicamentos e de equipes, somada à inércia burocrática, transforma a espera em uma forma cruel de exclusão.
A próxima reunião do Centro de Operações de Emergências de Saúde Pública, com participação da Defensoria, Ministério Público e Conselho Municipal de Saúde, será crucial. Mas reuniões não bastam se não forem acompanhadas de uma reforma estrutural que enfrente os gargalos históricos do SUS: financiamento insuficiente, desprestígio da atenção primária e fragilidade da gestão pública.
Democracia é também saúde pública
A filósofa norte-americana Martha Nussbaum escreveu que “a dignidade humana está diretamente ligada à capacidade de uma pessoa viver com saúde, segurança e amparo do Estado”. A crise da saúde em Campo Grande é, antes de tudo, um ataque à dignidade. E uma democracia que não garante esse direito básico caminha perigosamente rumo ao descrédito social.
A urgência, portanto, não é só médica: é política. A crise nas UPAs de Campo Grande serve como espelho para refletirmos sobre o modelo de Estado que desejamos. Um Estado mínimo não dá conta de demandas máximas. E a saúde, como determina a Constituição, não pode ser mercadoria — deve ser direito.