Santa Casa expõe fragilidade da saúde pública em CG

Folha salarial consome 75% das receitas, repasses estão estagnados e hospital enfrenta superlotação, falta de insumos e impasse judicial

No coração do sistema público de saúde de Campo Grande, a Santa Casa – maior hospital da região Centro-Oeste – caminha à beira do colapso. Enquanto a folha salarial dobrou em quatro anos, os repasses públicos permanecem praticamente inalterados, gerando um cenário de sufocamento financeiro, judicialização de verbas e ameaça direta à continuidade de serviços essenciais. Em meio à superlotação e à escassez de insumos básicos, médicos do setor de ortopedia alertam: vidas estão em risco.

A crise se desenrola num momento em que a pressão sobre o sistema público de saúde é crescente, com aumento da demanda e escassez de recursos. Em dezembro de 2024, o hospital desembolsou R$ 42,4 milhões apenas com salários – valor quase 100% superior aos R$ 22,5 milhões pagos no mesmo mês de 2021. Deste total, R$ 33,7 milhões foram destinados a funcionários celetistas e R$ 8,7 milhões a contratados via pessoa jurídica. O custo da folha consumiu 74,9% das receitas do mês, superando amplamente os limites de sustentabilidade administrativa.

Embora não esteja sujeito à Lei de Responsabilidade Fiscal, por ser uma entidade filantrópica, a Santa Casa opera como uma estrutura pública de fato: atende majoritariamente via SUS e depende quase integralmente de repasses governamentais. Em dezembro passado, esses repasses somaram R$ 37,7 milhões, complementados por R$ 18,8 milhões em empréstimos ou resgates de investimentos. O cenário contrasta com a estabilidade dos valores transferidos pelo poder público: R$ 28,2 milhões em 2021 contra R$ 32,6 milhões em 2024 – um crescimento de apenas 15,6% no período, frente a um aumento de quase 90% nas despesas salariais.

De acordo com o Portal da Transparência de Campo Grande, desde a formalização do contrato com a Associação Beneficente, em junho de 2021, já foram realizados 38 aditivos contratuais – muitos relacionados a valores pontuais. A média mensal dos repasses ao hospital ao longo dos 42 meses de vigência do contrato é de R$ 30,8 milhões, número abaixo dos R$ 42,4 milhões gastos com pessoal apenas em dezembro passado.

Diante da insuficiência crônica de recursos, a Santa Casa recorreu à Justiça exigindo o repasse de R$ 46 milhões, referentes a valores da União supostamente destinados ao hospital em 2020, durante o auge da pandemia de Covid-19. A decisão judicial favorável determinou o pagamento em até 48 horas. A prefeitura, no entanto, reagiu, argumentando que a medida comprometeria toda a estrutura de serviços públicos da cidade. “A medida inviabilizará todos os demais serviços públicos necessários à população, inclusive da saúde”, alegou o Executivo Municipal em recurso.

O conflito entre hospital e prefeitura escancara um dilema crônico do sistema público de saúde no Brasil: a combinação de subfinanciamento com ausência de governança eficaz. A Santa Casa, embora juridicamente privada, cumpre função pública essencial, num modelo que remonta à tradição brasileira de terceirização de serviços públicos a entidades filantrópicas – um arranjo que, segundo o sociólogo Gilberto Hochman, “cria zonas cinzentas de responsabilidade e dificulta a accountability”.

A crise financeira se traduz diretamente em colapso assistencial. Na segunda-feira, 24 de março, o hospital emitiu ofício às autoridades pedindo suspensão de novos encaminhamentos de pacientes, devido à superlotação. A ala de urgência e emergência, projetada para 13 leitos, abrigava mais de 80 pessoas. No dia seguinte, médicos da ortopedia registraram boletim de ocorrência relatando falta total de insumos cirúrgicos – 70 pacientes, segundo o documento, correm risco de morte ou sequelas graves.

Esse não é um caso isolado. Segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), entre 2021 e 2023, mais de 60% dos hospitais filantrópicos do país relataram déficit orçamentário contínuo. A defasagem da tabela SUS – principal fonte de custeio das entidades – é frequentemente apontada como uma das causas centrais do problema. Um estudo da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB) mostra que o SUS cobre, em média, apenas 60% do custo real dos procedimentos realizados por esses hospitais.

A conjuntura da Santa Casa de Campo Grande evidencia não apenas um colapso institucional, mas uma falência sistêmica. O modelo de financiamento da saúde pública, estruturado sob o princípio da universalidade constitucional desde a criação do SUS em 1988, enfrenta gargalos que não são apenas técnicos ou orçamentários, mas essencialmente políticos. Como alerta o sanitarista e ex-ministro da Saúde Arthur Chioro: “É impossível sustentar um sistema universal de saúde com subfinanciamento crônico e ausência de planejamento de médio e longo prazo”.

Enquanto o impasse jurídico se arrasta, o hospital segue em situação crítica. E a população, mais uma vez, paga o preço do descompasso entre promessas constitucionais e a realidade orçamentária. Em tempos de regressão democrática e ataques aos direitos sociais, o que ocorre na Santa Casa é mais do que uma crise de gestão: é um sintoma agudo da negligência estrutural com a saúde pública.

O futuro imediato depende de decisões políticas corajosas. Sem um novo pacto federativo de financiamento e maior transparência na gestão dos recursos, casos como o de Campo Grande tendem a se repetir – com consequências cada vez mais graves. Afinal, como dizia o médico sanitarista Sérgio Arouca, um dos arquitetos do SUS: “Saúde não é ausência de doença. Saúde é a forma como a sociedade cuida de si mesma”.

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