Por Adriana Ramalho
A cada ano, milhares de crianças e adolescentes em abrigos por todo o Brasil aguardam uma chance de recomeçar a vida em um novo lar. Mas para muitos, o tempo corre mais rápido que a esperança. Quando completam 18 anos sem serem adotados, deixam as instituições de acolhimento e precisam enfrentar o mundo sozinhos – muitas vezes, sem apoio, sem estrutura e com marcas emocionais profundas. Este fenômeno, ainda invisibilizado na pauta pública, revela os desafios da chamada adoção tardia e o impacto do abandono prolongado na formação desses jovens.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 4 mil crianças e adolescentes estão disponíveis para adoção no Brasil. No entanto, a maioria dos pretendentes busca crianças com até três anos de idade, saudáveis e sem irmãos. Já os jovens acima de oito anos, especialmente aqueles que fazem parte de grupos de irmãos ou têm alguma deficiência, enfrentam chances significativamente menores de serem acolhidos por uma família.
Para adolescentes entre 14 e 17 anos, a adoção se torna uma exceção. Eles passam boa parte da juventude em instituições, e, ao atingirem a maioridade, precisam deixar o abrigo. Sem apoio familiar, muitos saem sem perspectivas claras de estudo, emprego ou moradia.
Ao completarem 18 anos, os jovens abrigados enfrentam uma transição abrupta. É como ser jogado no mundo sem mapa e sem bússola. Eles não tiveram a experiência de um ambiente familiar estruturado, o que compromete o desenvolvimento emocional e social. O abandono não termina aos 18, ele apenas muda de forma.
Fora dos abrigos, os jovens costumam enfrentar dificuldades em conseguir trabalho fixo ou ingressar no ensino superior. Muitos não têm documentos atualizados, histórico escolar completo ou acesso a programas de auxílio governamental. Além disso, há o impacto psicológico acumulado: sentimentos de rejeição, baixa autoestima, desconfiança nas relações e, em casos extremos, depressão e ideação suicida.
Viver em instituições de acolhimento por longos períodos molda profundamente a subjetividade dessas crianças. A ausência de vínculos afetivos duradouros afeta o desenvolvimento emocional e cognitivo. Em muitos casos, elas constroem defesas emocionais para suportar as constantes rupturas, o que pode gerar comportamentos agressivos, retraídos ou de auto isolamento.
Atualmente, as políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes em situação de acolhimento no Brasil ainda são insuficientes, especialmente quando se trata da adoção tardia e do amparo aos jovens que completam 18 anos nos abrigos. Há iniciativas pontuais, mas faltam ações estruturadas e de longo prazo. A seguir, apresento um panorama das políticas existentes e sugestões do que poderia ser feito:
Políticas públicas existentes
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
É a principal legislação que rege os direitos de crianças e adolescentes no Brasil. O ECA garante, entre outros pontos, o direito à convivência familiar e comunitária. Ele determina que a permanência em abrigos deve ser medida provisória e excepcional, com prazo máximo de 18 meses – salvo exceções justificadas por decisão judicial.
Cadastro Nacional de Adoção (CNA)
Mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o CNA organiza a fila de pretendentes à adoção e reúne dados sobre crianças e adolescentes disponíveis. Tem como objetivo tornar o processo mais transparente e eficiente. Em 2019, foi unificado com o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas, formando o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).
Programas de Apadrinhamento Afetivo
São políticas locais, geridas por tribunais estaduais ou entidades sociais, que permitem que pessoas ou famílias desenvolvam vínculos com crianças e adolescentes que dificilmente seriam adotados, oferecendo afeto, convivência e apoio material ou educacional. Embora valiosos, esses programas ainda não são amplamente implantados ou institucionalizados no Brasil.
Serviços de acolhimento institucional e familiar
Abrigos e casas-lares são os formatos mais comuns de acolhimento institucional. Já o acolhimento familiar, previsto no ECA, ainda é pouco utilizado. Ele consiste em famílias temporárias que acolhem crianças com vínculos afetivos, até que retornem à família biológica ou sejam adotadas.
Programas de socioeducação e capacitação
Em algumas cidades, existem programas que oferecem oficinas, cursos e orientação profissional para adolescentes prestes a sair dos abrigos. No entanto, esses programas variam muito entre os municípios e não estão garantidos por uma política federal consistente.
Políticas públicas que poderiam ser implantadas ou ampliadas
Política nacional para jovens egressos do acolhimento
É urgente a criação de uma política pública federal específica para jovens que completam 18 anos nos abrigos. Ela poderia incluir:
· Moradias assistidas ou aluguel social temporário.
· Bolsa permanência para estudo e capacitação profissional.
· Prioridade em programas de emprego e inserção no mercado de trabalho.
· Acompanhamento psicológico e social até pelo menos os 21 anos.
Incentivo à adoção tardia
Campanhas públicas massivas, educação da população sobre o tema e benefícios específicos para famílias que adotem adolescentes ou grupos de irmãos (como prioridade em escolas, isenção de taxas ou acompanhamento psicológico gratuito) podem ajudar a ampliar o número de adoções tardias.
Ampliação do acolhimento familiar
Investir em formar, apoiar e fiscalizar famílias acolhedoras pode humanizar o processo de acolhimento e criar experiências afetivas mais próximas da realidade familiar, fundamentais para o desenvolvimento saudável das crianças.
Capacitação das equipes técnicas
Muitos profissionais que atuam em abrigos ou varas da infância não têm formação especializada sobre adoção tardia, trauma infantil e desenvolvimento emocional de crianças institucionalizadas. Capacitar essas equipes é essencial para oferecer um atendimento mais eficaz e humanizado.
Articulação intersetorial
Educação, saúde, assistência social e sistema de justiça precisam atuar de forma integrada. É comum que jovens saiam dos abrigos e “desapareçam” do radar do Estado. Um sistema interligado pode garantir acompanhamento contínuo.
Essas ações são parte de uma abordagem mais empática e estruturada, que reconhece o direito de todos os jovens a uma transição segura para a vida adulta e à construção de um projeto de vida com dignidade.
A adoção tardia, apesar dos desafios, é possível e transformadora. Famílias que optam por adotar adolescentes relatam experiências de crescimento mútuo, embora muitas vezes enfrentam períodos de adaptação difíceis. A chave está na disposição para acolher, compreender e oferecer amor incondicional – algo que esses jovens muitas vezes nunca tiveram.
Adotar uma criança mais velha não é sobre salvar alguém, mas sobre compartilhar a vida com alguém que merece uma chance de recomeçar.