Situação é agravada pela renúncia fiscal promovida pela Prefeitura: nos próximos três anos, Consórcio será isento de R$ 31,7 milhões em ISS
A tarifa do transporte coletivo de Campo Grande subiu para R$ 4,95 nesta sexta-feira (24), reacendendo debates sobre acessibilidade, gestão pública e a responsabilidade social das concessionárias de serviços essenciais. O reajuste expõe fragilidades em contratos públicos e aprofunda a insatisfação dos usuários.
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O aumento de 4,21% na tarifa foi aprovado pela Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos (Agereg) após decisão judicial que obrigou a Prefeitura a implementar o reajuste. O diretor-presidente da agência, José Mário Antunes, destacou que, em contrapartida, será exigido o cumprimento de cláusulas contratuais que incluem a entrega de pelo menos 190 novos veículos até o final de 2025. Contudo, o histórico de descumprimentos do Consórcio Guaicurus, concessionária responsável pelo transporte, levanta dúvidas sobre a efetividade dessas promessas.
Transporte público como direito social e as falhas estruturais
Desde a Constituição de 1988, o transporte coletivo é reconhecido como um direito social, essencial para garantir o acesso da população a outros direitos, como educação, saúde e trabalho. No entanto, a prática muitas vezes contradiz o ideal jurídico. Campo Grande é exemplo disso: apesar do lucro acumulado de mais de R$ 1,2 bilhão entre 2012 e 2019, o Consórcio Guaicurus enfrenta multas milionárias por descumprimento de cláusulas contratuais. Desde 2016, por exemplo, a empresa não contrata o seguro obrigatório estipulado no contrato de concessão, acumulando uma multa de R$ 12,2 milhões que segue inadimplente.
A situação é agravada pela renúncia fiscal promovida pela Prefeitura. Nos próximos três anos, o Consórcio será isento do pagamento de R$ 31,7 milhões em ISS (Imposto Sobre Serviços), medida que contrasta com o aumento das tarifas e o crescimento do patrimônio líquido da concessionária, que triplicou entre 2012 e 2019, chegando a R$ 55,9 milhões.
O impacto do aumento na vida dos usuários
Para o cidadão que depende do transporte público, o reajuste de tarifas é mais do que um ajuste financeiro; é um agravamento de um problema cotidiano. O sistema de transporte em Campo Grande é frequentemente criticado por sua falta de qualidade: atrasos, veículos em más condições e baixa cobertura em regiões periféricas são queixas recorrentes.
“O preço é alto, mas o serviço não melhora”, afirma Ana Cristina de Souza, trabalhadora doméstica que utiliza o transporte coletivo diariamente. Sua crítica ecoa um sentimento amplamente compartilhado: a percepção de que o aumento da tarifa não se traduz em melhorias concretas.
“Eu dependo do ônibus para tudo, mas é sempre um sofrimento. Os veículos estão velhos, quebram no meio do caminho, e a gente fica lá, sem saber o que fazer. E agora aumentar o preço de novo? Mal dá para pagar, porque meu salário já não é suficiente para o mês inteiro. Não vejo melhoria nenhuma no serviço, só aumento de tarifa”, diz a auxiliar de serviços gerais Maria Aparecida.
O universitário João Pedro afirma: “O transporte público aqui é muito caro para a qualidade que oferece. Tem dia que eu perco aula porque o ônibus demora mais de 40 minutos para passar. E quando vem, está lotado, impossível de entrar. Falam que a tarifa é ajustada com base em índices, mas e o índice de satisfação dos usuários? Parece que só querem lucro.”
Renata Oliveira, vendedora autônoma, também está insatisfeita: “Moro nas Moreninhas e dependo do transporte público para trabalhar. É sempre um desafio: os ônibus estão sujos, atrasam, e muitas vezes nem fazem as rotas corretamente. Essa promessa de novos veículos já ouvi várias vezes, mas até agora nada. Enquanto isso, o preço só aumenta, e quem paga somos nós, que já estamos no limite.”
Essa insatisfação tem um custo político. Em 2013, o aumento das tarifas de transporte público foi o estopim das maiores manifestações populares no Brasil desde o movimento Diretas Já, em 1984. Embora o contexto atual seja diferente, o aumento de tarifas em um cenário de fragilidade econômica pode reacender tensões sociais.
A responsabilidade social das empresas e o papel do Estado
O caso de Campo Grande ilustra um dilema enfrentado por muitas cidades brasileiras: como equilibrar os interesses econômicos das concessionárias com a necessidade de garantir um transporte público de qualidade e acessível. Em teoria, contratos de concessão devem assegurar um equilíbrio entre esses interesses. Na prática, porém, os mecanismos de fiscalização mostram-se insuficientes, como evidenciado pela incapacidade da Prefeitura de obrigar o Consórcio Guaicurus a cumprir cláusulas contratuais básicas.
Para a filósofa e economista Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel, “a justiça social requer que as instituições promovam a liberdade substantiva das pessoas, o que inclui a mobilidade”. Aplicando esse princípio, é evidente que um sistema de transporte público caro e ineficiente restringe liberdades, acentuando desigualdades sociais.
E agora?
O reajuste tarifário de Campo Grande é um lembrete da necessidade de repensar o modelo de gestão do transporte público no Brasil. A ampliação de subsídios, a regulamentação mais rigorosa e a criação de mecanismos para garantir transparência e responsabilidade são passos fundamentais. Sem isso, a lógica mercantil continuará prevalecendo sobre o interesse público.
Como aponta o urbanista brasileiro Ermínia Maricato, “a mobilidade urbana é um termômetro da democracia nas cidades”. Enquanto o transporte público for tratado apenas como uma fonte de lucro, a democracia no espaço urbano seguirá comprometida.