Inspirado em Farmácia Popular, governo estuda rede para baratear alimentos

Enquanto governo federal busca alternativas para combater a fome, prefeito bolsonarista proíbe distribuição de marmitas

A luta contra a fome, um tema central na agenda brasileira desde os anos 1990, volta ao centro do debate público em 2024, com propostas que refletem duas realidades contrastantes. De um lado, o governo federal articula um programa inspirado no “Farmácia Popular”, visando baratear alimentos básicos para populações vulneráveis. De outro, administrações locais, como a de Cuiabá, desmantelam iniciativas de amparo alimentar, optando por narrativas que reforçam preconceitos e negligenciam direitos básicos.

Essa dicotomia expõe o fosso ideológico que atravessa o país. Enquanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfatiza que é “tarefa do governo garantir que o alimento chegue na mesa do povo trabalhador”, prefeitos como Abílio Brunini (PL), de Cuiabá, declaram guerra a programas que distribuem marmitas à população em situação de rua, sob a justificativa de que “isso os mantém na rua”.

Uma proposta para alimentar a dignidade

O aumento de 7,69% nos preços de alimentos e bebidas em 2024, de acordo com o IBGE, foi o principal motor da inflação de 4,83% registrada no ano. Diante disso, o governo federal explora soluções para aliviar os custos alimentares, especialmente nas periferias. Inspirado no modelo do “Farmácia Popular”, que subsidia medicamentos, a ideia seria criar uma rede de pequenos varejistas em comunidades para oferecer alimentos básicos a preços reduzidos, minimizando custos logísticos e conectando consumidores de baixa renda a produtores.

Embora ainda em fase de estudo, o programa tem a ambição de usar estruturas já existentes, como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), para evitar novos subsídios, dado o aperto orçamentário. “Queremos fazer o caminho inverso: levar os alimentos diretamente ao pequeno varejo, eliminando custos intermediários”, explicou Edegar Pretto, presidente da Conab. A iniciativa também poderia resgatar princípios do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que já beneficia populações carentes, mas em formato mais amplo e comercial.

Medidas como essa ecoam os compromissos históricos do Brasil no combate à fome, como o programa Fome Zero, iniciado no primeiro mandato de Lula. Na época, esses esforços ajudaram a tirar o Brasil do Mapa da Fome da ONU em 2014. Contudo, com a pandemia e a crise econômica subsequente, o país retornou à lista em 2021, revelando a urgência de políticas estruturais e humanistas.

A retórica do grotesco e a exclusão institucionalizada

Em contraste, o prefeito de Cuiabá, Abílio Brunini, opta por medidas que não apenas ignoram a crise alimentar, mas atacam diretamente os mais vulneráveis. A decisão de interromper o programa de entrega de marmitas para pessoas em situação de rua, associada ao apelo à “responsabilidade individual” da sociedade civil, revela uma lógica que prioriza a estética social em detrimento de soluções reais.

Essa abordagem, frequentemente associada à aporofobia — o desprezo pelos pobres, como bem definiu o padre Júlio Lancellotti —, não é isolada. Em São Paulo, no ano passado, um projeto de lei semelhante buscava restringir a doação de alimentos a moradores de rua, mas foi retirado após intensa reação pública. Essas iniciativas refletem uma política de exclusão que, como aponta o sociólogo Loïc Wacquant, “criminaliza a pobreza ao invés de combatê-la”.

Além disso, a estratégia de Brunini em Cuiabá parece replicar um modelo político utilizado amplamente por Jair Bolsonaro e, fora do Brasil, por figuras como Donald Trump. Apelando ao grotesco e ao escândalo, políticos desse perfil garantem exposição midiática e consolidam bases eleitorais leais, mesmo quando suas ações pouco contribuem para resolver problemas estruturais. A tática é simples: quanto mais absurda a medida, maior a atenção recebida.

O papel da mídia e o desafio da cobertura crítica

O paradoxo desse fenômeno é que, ao mesmo tempo que ações controversas captam a atenção, elas frequentemente desviam o foco de questões centrais, como a gestão ineficiente de saúde e infraestrutura. Uma pesquisa Genial/Quaest de 2023 apontou que 56% dos cuiabanos identificam a saúde pública como sua principal preocupação, uma área onde as promessas do prefeito permanecem distantes de resultados concretos.

Nesse cenário, o papel da imprensa se torna crucial. Como cobrir medidas que reforçam desigualdades sem amplificar discursos excludentes? A filósofa Hannah Arendt alertava para o perigo de normalizar o absurdo político, que, uma vez aceito, enfraquece os alicerces democráticos. Para além da denúncia, é necessário contextualizar, criticar e propor caminhos, fortalecendo o debate público.

Entre duas visões de Brasil

A polarização na abordagem da segurança alimentar simboliza algo maior: um embate entre projetos de país. De um lado, uma política que busca incluir e redistribuir; do outro, uma estratégia que alimenta preconceitos e negligencia direitos básicos. Como argumenta Amartya Sen, economista e prêmio Nobel, “a fome não é apenas uma questão de produção de alimentos, mas de distribuição e justiça social”.

A democracia brasileira, construída sob o signo da pluralidade e dos direitos humanos, exige de seus gestores um compromisso com soluções que priorizem a dignidade e a cidadania. O combate à fome é, antes de tudo, uma afirmação de valores éticos e sociais, essenciais para um país que almeja ser mais justo e igualitário.

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