Hoje, o procedimento só é permitido em três situações, que são gestação decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal. Os dois primeiros estão previstos no Código Penal de 1940 e o último foi permitido via decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em 2012. Para todos esses cenários, não há limite da idade gestacional para a realização do procedimento.
BÁRBARA BLUM
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Projeto de Lei 1904, que teve a urgência aprovada na Câmara dos Deputados, quer colocar um teto de 22 semanas na realização de qualquer procedimento de aborto em casos de estupro no Brasil.
Hoje, o procedimento só é permitido em três situações, que são gestação decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal. Os dois primeiros estão previstos no Código Penal de 1940 e o último foi permitido via decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em 2012. Para todos esses cenários, não há limite da idade gestacional para a realização do procedimento.
Desta forma, é no tempo de gravidez que mira o projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). O texto quer alterar o Código Penal para aumentar a pena imposta àqueles que fizerem abortos quando há viabilidade fetal, presumida após 22 semanas de gestação. A ideia é equiparar a punição à de homicídio simples, que pode chegar a 20 anos. A pena valeria tanto para grávidas, quanto para quem realiza o procedimento.
O deputado disse à coluna da Mônica Bergamo que é pessoalmente contra o aborto, e que o tema será uma provação entre Lula e os evangélicos, notadamente conhecidos por serem contrários à prática.
“Não acredito no Lula”, afirmou. “Quero aprovar esse projeto para ver se ele vai sancionar ou se vai vetar.”
A Folha entrou em contato com Sóstenes com mais perguntas a respeito do projeto, mas não teve retorno até a publicação do texto.
“O projeto trata de todos os casos de aborto que estão no Código Penal, inclusive os que não se pune o aborto no Brasil”, diz Laura Molinari, coordenadora da ONG Nem Presa, Nem Morta, se referindo às três situações em que o procedimento é autorizado. Ela afirma que, caso o projeto de lei seja aprovado, a punição poderia afetar inclusive profissionais do SUS (Sistema Único de Saúde).
Hoje, o Código Penal diz, no artigo 128, que não se pune o aborto praticado por médico em caso de estupro. O PL acrescenta uma emenda que afirma que se a gravidez for resultante da violêcia sexual e houver viabilidade fetal, “não se aplicara a excludente de punibilidade”, ou seja, haverá punição pela prática.
Molinari afirma que as mais afetadas serão meninas e mulheres que sofreram violência sexual. “Mulheres mais pobres, que moram longe dos centros urbanos”, diz. “No caso de meninas e adolescentes, tem uma demora em identificar abuso e gravidez. Mulheres vítimas de violência têm que lidar com o trauma e a dificuldade de sair daquela situação.”
Flávia Biroli, professora de ciência política da UnB (Universidade de Brasília), afirma que o aborto em casos de estupro corresponde, em sua maioria, a meninas. “Quando se opera para restringir o acesso ao aborto legal, me parece que o ônus é menor do que dizer que querem reverter o acesso das meninas estupradas”, diz ela.
A professora afirma que não vê, no Brasil, um amplo apoio à descriminalização do aborto sem condicionantes, mas que “existe apoio significativo à lei existente, à manutenção do acesso” nos casos previstos de lei.
O projeto de Sóstenes Cavalcante foi protocolado em meio a uma disputa que envolve o CFM (Conselho Federal de Medicina) e se arrasta desde abril. O órgão tentou proibir a assistolia fetal, um procedimento que consiste na injeção de produtos químicos no feto para evitar que ele seja removido com sinais vitais. O procedimento é recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e tido pelos protocolos nacionais e internacionais de obstetrícia como a melhor prática assistencial à mulher em casos de aborto legal acima de 20 semanas.
A resolução do CFM, de autoria de Raphael Câmara Parente, que é ex-secretário da saúde básica do governo Bolsonaro, restringia a assistolia em gestações resultantes de estupro -em caso de risco à vida da gestante e anencefalia fetal, o procedimento ainda poderia ser realizado. Depois de idas e vindas jurídicas, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a resolução.
Para Molinari, os autores do PL “criam uma relação entre a assistolia fetal e o homicídio, o que abre um precedente para atribuir personalidade jurídica ao feto”. O fato de o projeto ter sido protocolado no dia seguinte à derrubada feita por Moraes corrobora com essa leitura, afirma.
A Câmara já tem, pelo menos, oito proposições que citam nominalmente a assistolia fetal, entre moções de apoio e repúdio, requerimentos para a realização de seminários e projetos de lei. O PL 1904 não cita a assistolia.