Vereadores apuram qualidade da frota, subsídios e fiscalização sobre o Consórcio Guaicurus
A Câmara Municipal de Campo Grande deu um passo decisivo na apuração da crise do transporte público ao instaurar a CPI dos Ônibus. A comissão, que terá cinco membros e duração inicial de 120 dias, investigará tanto a atuação do Consórcio Guaicurus — responsável pelo serviço na capital sul-mato-grossense — quanto o papel da prefeitura na fiscalização do contrato. O foco recai sobre a qualidade da frota, os subsídios concedidos pelo Executivo e a atuação dos órgãos municipais na regulação do sistema.
A instauração da CPI ocorre após anos de queixas da população sobre o transporte coletivo. Problemas como ônibus superlotados, veículos quebrando no meio do trajeto e um serviço aquém do esperado são recorrentes. Apenas na última semana, três ônibus apresentaram falhas mecânicas em horário de pico, um deles parando justamente em frente à Câmara Municipal.
“Estamos dando uma resposta ao povo de Campo Grande. Esta CPI é um compromisso com a transparência e com a fiscalização do contrato firmado entre a prefeitura e o Consórcio Guaicurus”, afirmou o presidente da Câmara, vereador Epaminondas Neto, o Papy. Segundo ele, a comissão “está acima de interesses pessoais e de qualquer vaidade”.
A formação da CPI e os desafios pela frente
Os cinco vereadores que irão compor a CPI são Ana Portela (PL), Maicon Nogueira (PP), Dr. Lívio Leite (União Brasil), Junior Coringa (MDB) e Luiza Ribeiro (PT). Os parlamentares agora devem definir o presidente e o relator, responsáveis por conduzir os trabalhos e elaborar o relatório final.
A instauração da CPI não foi simples. Foram necessárias quatro tentativas até que a investigação fosse aberta. Dois requerimentos distintos foram apresentados: um pelo vereador Junior Coringa, que mirava exclusivamente o Consórcio Guaicurus, e outro pelo vereador Dr. Lívio, presidente da Comissão de Transporte e Trânsito, que ampliou o escopo para incluir também a prefeitura. O segundo requerimento prevaleceu.
Os pontos centrais da investigação incluem:
Conservação da frota: análise da idade média e do estado dos veículos nos últimos cinco anos;
Equilíbrio financeiro contratual: impacto dos subsídios concedidos pelo Executivo Municipal ao consórcio;
Fiscalização do contrato: avaliação do papel da prefeitura e dos órgãos reguladores após a assinatura do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) com o Tribunal de Contas do Estado (TCE-MS) em 2020.
A crise do transporte público: um problema nacional
A CPI de Campo Grande reflete um problema estrutural enfrentado em diversas capitais brasileiras. O modelo de concessão do transporte coletivo, em muitos casos, falha em oferecer um serviço de qualidade enquanto consórcios privados continuam a receber subsídios milionários.
O sociólogo e urbanista Eduardo Vasconcellos, especialista em mobilidade urbana, aponta que a crise do transporte público no Brasil é um reflexo da ausência de políticas públicas eficientes e da falta de fiscalização rigorosa. “A concessão do transporte para a iniciativa privada não pode significar um cheque em branco. O Estado precisa garantir que o serviço prestado atenda às necessidades da população, com qualidade e segurança”, afirma Vasconcellos.
O caso do Consórcio Guaicurus não é isolado. Em São Paulo, investigações apontaram irregularidades nos contratos das empresas de ônibus, e no Rio de Janeiro, diversas concessionárias chegaram a abandonar linhas consideradas “não lucrativas”, deixando bairros inteiros sem transporte.
O modelo de subsídios também tem sido alvo de questionamentos. A cidade de Campo Grande aprovou recentemente duas leis complementares (519/2024 e 537/24) que concedem recursos públicos ao consórcio. A CPI pretende verificar se esses subsídios têm sido aplicados corretamente ou se há indícios de desequilíbrio financeiro no contrato.
A Prefeitura sob escrutínio
Embora a CPI tenha surgido a partir das falhas do serviço prestado pelo Consórcio Guaicurus, o envolvimento da prefeitura na questão se tornou um dos pontos mais sensíveis da investigação. Os órgãos reguladores municipais, como a Agereg e a Agetran, têm a responsabilidade de fiscalizar a execução do contrato.
A assinatura do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) com o TCE-MS, em 2020, já era um indicativo de que havia problemas na relação entre a prefeitura e o consórcio. No entanto, anos depois, a população segue reclamando da precariedade do serviço.
Para o vereador Dr. Lívio, a CPI terá um papel fundamental em esclarecer se há omissões por parte do Executivo. “A competência da comissão é investigar e produzir um relatório técnico bem embasado, que possa ser encaminhado aos órgãos de controle. Se houver irregularidades, as responsabilidades terão de ser assumidas”, declarou.
Perspectivas e próximos passos
Os trabalhos da CPI dos Ônibus começam em um momento crítico, às vésperas das eleições municipais, o que adiciona um componente político à investigação. Além da possibilidade de uma prorrogação do prazo inicial de 120 dias, o relatório final poderá ser encaminhado ao Ministério Público, que pode recomendar ações judiciais contra os envolvidos.
A população de Campo Grande, por sua vez, espera que a CPI traga mais do que apenas um relatório técnico. A crise no transporte público afeta diretamente a vida dos cidadãos, impactando desde o tempo de deslocamento até a segurança no trajeto. Se a CPI conseguir efetivamente apontar soluções e responsabilizar eventuais culpados, pode representar um avanço na luta por um transporte público mais digno e eficiente.
O desfecho da investigação será um teste não apenas para a Câmara Municipal, mas para toda a estrutura de fiscalização e gestão da cidade. Afinal, como bem alertava o sociólogo Manuel Castells, “a crise urbana não é apenas uma crise de infraestrutura, mas uma crise da própria democracia”.