Com Santa Casa à beira da falência e UPAs superlotadas, Prefeitura enfrenta denúncias
Um sistema em colapso. Mais de 70 pacientes em risco iminente de morte ou sequelas irreversíveis. Cirurgias emergenciais suspensas por falta de insumos básicos. UPAs lotadas, com pacientes espalhados em macas nos corredores, aguardando por horas — ou por dias — uma vaga hospitalar que não existe. Esse é o retrato da saúde pública em Campo Grande sob a gestão da prefeita Adriane Lopes (PP), mergulhada numa crise que transcende a escassez e revela um modelo de gestão que acumula omissões, improvisos e decisões tardias.
A denúncia, feita por médicos da Santa Casa de Campo Grande à Polícia Civil, escancara a dimensão do problema: a unidade, responsável por mais da metade dos atendimentos de alta complexidade na capital, vive uma situação “caótica” nos setores de urgência, emergência e ortopedia. “Não há nenhum material ortopédico disponível para a realização de cirurgias de urgência”, disse um dos profissionais ao registrar o boletim de ocorrência. Em reação imediata, o hospital fechou as portas para novos pacientes, agravando ainda mais a sobrecarga nas UPAs e Centros Regionais de Saúde (CRS), que operam no limite de sua capacidade.
A crise, embora dramatizada pelo colapso recente, tem raízes profundas e estruturais. O subfinanciamento crônico da saúde pública em Campo Grande é há anos denunciado por gestores, profissionais da área e entidades médicas. A própria Santa Casa recorreu ao Judiciário, alegando que a prefeitura não cumpriu integralmente o orçamento destinado à saúde no último ano. A Justiça, em decisão de urgência, determinou o repasse imediato de R$ 46 milhões, sob pena de sequestro de bens, para garantir o funcionamento mínimo da unidade.
Segundo dados do Ministério da Saúde, o estado do Mato Grosso do Sul conta com apenas um leito hospitalar para cada 607 habitantes, índice distante da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugere de 3 a 5 leitos por mil habitantes. Em números absolutos, o estado possui 6.690 leitos, sendo 4.556 públicos, via SUS — uma estrutura claramente insuficiente diante da crescente demanda populacional e sazonalidades, como o aumento de doenças respiratórias no outono.
Mas a escassez de infraestrutura é apenas parte do problema. A ausência de um hospital municipal público em Campo Grande, uma lacuna histórica e estratégica, faz com que a capital dependa quase exclusivamente da Santa Casa, do Hospital Regional e do Hospital Universitário. Essa dependência torna o sistema vulnerável a qualquer instabilidade — como a que se vê agora.
Frente ao caos, a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) anunciou um aporte emergencial de R$ 1 milhão por mês, elevando o repasse total à Santa Casa para R$ 6 milhões. O governo estadual, por sua vez, avalia aumentar sua cota atual de R$ 9 milhões mensais. Contudo, especialistas alertam que injetar recursos sem reformar estruturalmente o sistema é como tentar conter uma enchente com baldes furados.
“O financiamento é essencial, mas sem planejamento estratégico, regionalização dos atendimentos e valorização dos profissionais da saúde, continuaremos reféns de medidas paliativas”, analisa a médica sanitarista e professora da USP, Ligia Giovanella, em entrevista à Fiocruz (2023). Ela ressalta que a descentralização da gestão, prevista pelo SUS, exige responsabilidades proporcionais dos entes federativos — e isso inclui a construção e manutenção de infraestrutura própria pelos municípios.
No entanto, a gestão da prefeita Adriane Lopes parece mais inclinada a administrar crises do que a evitá-las. A postura reativa ficou evidente também na condução da crise atual: só após a mobilização dos médicos e a iminência de colapso total é que medidas como renegociação com outras unidades e aporte emergencial foram anunciadas.
Enquanto isso, a população sente na pele o peso do abandono. Nas UPAs, pacientes com fraturas, crises de vesícula e síndromes respiratórias esperam mais de 12 horas por atendimento. A UPA Coronel Antonino, por exemplo, contabilizava mais de 20 pacientes em estado grave aguardando transferência para hospitais que simplesmente não os recebem mais.
Em um cenário como esse, a recomendação de evitar levar crianças pequenas às unidades de saúde, por conta da alta circulação viral, soa como cinismo institucional — como se o problema fosse a presença dos doentes, e não a ausência de um sistema digno para atendê-los.
A saúde pública, enquanto direito constitucional assegurado pelo artigo 196 da Constituição Federal, torna-se aqui uma promessa vazia. A crise da Santa Casa e o colapso das unidades básicas revelam não apenas a fragilidade estrutural do sistema, mas a falência de uma gestão que parece não compreender a complexidade do que está em jogo: vidas humanas.
O filósofo e sociólogo Norberto Bobbio, em sua obra A Era dos Direitos, lembra que “o verdadeiro progresso de uma democracia se mede pela efetivação dos direitos sociais”. À luz dessa lição, Campo Grande dá um passo atrás. A atual gestão compromete não só o presente da saúde pública local, mas também o pacto civilizatório mínimo que sustenta qualquer projeto democrático: o cuidado com a vida.