Morre Tomie Ohtake, 101, grande dama das artes brasileiras

Morreu nesta quinta-feira, aos 101 anos, a artista plástica Tomie Ohtake, um dos grandes nomes das artes nacionais. Tomie estava internada desde 2 de fevereiro no hospital Sírio Libanês, em decorrência de uma pneumonia, e sofreu uma parada cardíaca na terça, quando seu quadro se agravou. A morte, de causa não revelada, se deu entre 12h30 e 13h. O velório, aberto ao público, será realizado nesta sexta-feira, das 8h às 14h, no Instituto Tomie Ohtake, que reúne e cataloga a sua obra, em São Paulo. 

Aquela que é chamada de “dama das artes plásticas brasileiras” pela crítica, na verdade, veio do Japão e iniciou carreira apenas com 39 anos, quando os filhos, Rui e Ricardo, já estavam crescidos. Tomie Nakakubo nasceu em 21 de novembro de 1913, em Kyoto, ao centro sul do Japão. Filha caçula e única mulher entre seis irmãos, Tomie teve uma experiência de quase morte ainda criança, em fevereiro de 1918. Com apenas 5 anos, foi diagnosticada com pneumonia, a mesma doença que a levaria a morte, e, examinada pelo médico da família, praticamente desacreditada. A menina parecia ter poucas chances de sobreviver e, para piorar, a tecnologia médica era então pouco avançada. Enquanto Tomie se recuperava, o pai, Keinosuke, sofreu um ataque cardíaco fulminante. “Ela se lembra bem do momento em que a levaram para se despedir do pai. Pela janela, podia ver a neve, já que era inverno”, contou Ricardo Ohtake, filho da artista e diretor-geral do Instituto Tomie Ohtake, ao Memorial VEJA.  

A menina ficou, então, aos cuidados da mãe e dos irmãos superprotetores na espaçosa casa da rua Shijo, no centro de Kyoto, que continua de pé e na família – o endereço é atualmente de uma sobrinha em segundo grau de Tomie. Foi na cidade que ela estudou e concluiu o curso equivalente ao ensino médio brasileiro, ainda que estudar não fosse a sua atividade predileta. “Ela preferia pintar, desenhar”, contou o arquiteto Ruy Ohtake, o filho mais velho de Tomie, a partir das histórias que ouviu da mãe. Além de receber educação formal, Tomie aprendia a ser “uma senhora japonesa, dona de casa”. Apesar de ser de uma família próspera e não ter necessidade de cozinhar ou limpar a casa, a menina aprendeu a fazer de tudo – e com habilidade, segundo o filho. 

Tomie Ohtake saiu de Kyoto, sua cidade natal, em 1936 para visitar um irmão que morava no Brasil e por acaso, acabou ficando. A viagem de Tomie e Teisuke não deveria durar mais que alguns meses, mas, enquanto os irmãos estavam no Brasil, a Segunda Guerra Sino-Japonesa estourou na Ásia. A partir daí, os civis japoneses que estavam fora da terra natal tinham de ceder lugar nos navios para aqueles que se apresentariam no front, caso de Teisuke, que morreria em combate. Impedida de voltar, Tomie ficou com Masutaro em São Paulo, onde se apaixonou pelo colega de trabalho do irmão, o engenheiro agrônomo japonês Ushio Ohtake, com quem se casaria ainda em 1936. Em janeiro de 1938, nasce Ruy, o primeiro filho do casal, que dividia casa com Masutaro na rua da Paz, na Mooca.

Entre 1940 e 1941, a família mudou de ares, trocando São Paulo pelo Rio de Janeiro, onde abriu uma filial da Produtos Científicos, no bairro do Botafogo. Mas, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial do lado oposto ao do Japão, eles foram aconselhados a se manter longe da costa brasileira e assim retornaram à capital paulista, novamente para a rua da Paz. Em outubro de 1942, nasceria ali Ricardo, segundo filho do casal. 

Tomie se dedicava à criação dos filhos e ao gerenciamento da casa, ainda que não ficasse responsável pela execução das tarefas domésticas – para isso, contava com empregadas que cozinhavam e faziam a limpeza. Das roupas do marido e dos garotos, no entanto, ela fazia questão de cuidar pessoalmente. Era ela, portanto, quem punha ordem na casa. Além de dura, Tomie se porta, desde a juventude, com educação, mas também com parcimônia, até mesmo nas palavras. 

Obra — Apesar do casamento e da rotina doméstica, o interesse de Tomie pelas artes plásticas não esmoreceu. Nessa época, ela levava o marido e os filhos a exposições nos museus da cidade, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), fundado em 1947 pelo empresário e jornalista Assis Chateaubriand e pelo crítico de arte italiano Pietro Maria Bardi. Até 1968, quando se transferiu para a avenida Paulista, o Masp ocupava quatro andares do prédio dos Diários Associados, de Chateaubriand, no centro de São Paulo.

A arte interferiria mais na dinâmica familiar depois da passagem por São Paulo do artista japonês Keisuke Sugano, conhecido como Keiya, em 1952. No país para realizar uma exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), Sugano conheceu Tomie durante a mostra e ministrou três ou quatro aulas informais de pintura na sala de estar dos Ohtake, para um pequeno grupo de amigos. O pintor, percebendo talento nos desenhos da mãe de Ruy e Ricardo, a incentivou a se aprimorar. Assim teve início a longeva carreira de Tomie nas artes plásticas. Ela tinha, então, 39 anos. “Sugano colocou um vaso de flores e pediu para os outros pintarem. Não foi um grande acontecimento, tudo aconteceu de modo natural”, lembra Ricardo.

Essa foi, também, a única vez em que a pintora receberia alguma orientação artística. Nos anos seguintes, ela aprenderia tudo sozinha, tateando a arte por conta própria, sem frequentar qualquer curso.  

Nem por isso fez pouco. Ao contrário. Tomie construiu uma obra rica, composta de pinturas, esculturas, gravuras e peças públicas, ao longo de sessenta anos. Na fase abstrata de sua pintura, a predominante da carreira, Tomie estabelece diálogos com o neoconcretismo brasileiro, representado por artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica, mas não se pauta por manifestos ou escolas artísticas, trilhando um caminho próprio. Único.

“Tomie é uma artista que busca a experiência da imperfeição. Ela sabe que não é perfeita, como humana que é, e trabalha seus quadros com essa consciência”, disse Paulo Herkenhoff, amigo de Tomie e diretor cultural do Museu de Arte do Rio (MAR), ao Memorial VEJA. Por isso, segundo ele, a artista criou uma geometria particular em suas telas, que se aproxima do neoconcretismo da segunda metade do século XX, definido pela geometria subjetiva. Ao mesmo tempo, ela se afastou da exatidão das formas ocidentais, com retas e círculos feitos a partir de instrumentos como régua e compasso, e compõe formas imprecisas, à mão.

Para Herkenhoff, a pintura de Tomie é feita pela transmissão direta da energia do corpo à tela, a partir de descargas aplicadas em pinceladas breves e repetidas. “A pintura tem dimensão corporal. Tomie estabeleceu um diálogo entre pintar e viver, a energia vital é a mesma que risca o quadro.”

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