Além de Camilo, Mato Grosso do Sul tem outros 109 infratores com problemas psiquiátricos, e a maior parte deles convive com os demais presos nos estabelecimentos penitenciários – sem remédios específicos, nem acompanhamento médico adequado. O Estado não tem um hospital de custódia para presos psiquiátricos e, apesar das alas de saúde em alguns presídios, a maioria dos internos não recebe o tratamento que deveria e colabora coma superlotação do sistema carcerário.
São pessoas que cometeram crimes por não terem consciência do caráter ilícito do ato que praticaram ou que estavam em pleno surto psicótico. E, por aqui não faltam exemplos, como o lutador de jiu-jitsu, Rafael Martinelli, Luis Alves Martins Filhos, o Nando, e Dyonathan Celestrino, 25 anos, que ficou conhecido como "Maníaco da Cruz". Por falta de vagas na rede pública de saúde e de hospitais de custódia – mais conhecidos como manicômios judiciários –, eles ficam em presídios comuns por tempo indeterminado.
REFÉNS
"Chega a ser uma situação desumana. Durante 30 anos, houve uma política de mudança dos paradigmas na saúde mental. Começou-se a acabar com leitos psiquiátricos, foram fechados mais de 90 mil leitos. Depois disso, vários estudos indicam que há uma relação direita entre o número de pacientes que vão para a cadeia. Foi justamente essa desasistência que acabou resultando em crimes cometidos por presos psiquiátricos e é a desasistência que tem feito com que eles continuem nesse limbo", explica o médico psiquiatra Kleber Francisco Meneghel Vargas.
Pela lei, a pessoa que sofre de transtornos mentais e comete um crime deveria ser absolvida no processo, desde que haja um nexo causal entre a doença e o delito. Com base em laudos médicos, o juiz determina o cumprimento de uma medida de segurança em hospitais de custódia ou em serviços ambulatoriais da rede pública de saúde.
A determinação é válida por tempo indeterminado, até que fique provado que o paciente não representa mais um perigo e pode voltar ao convívio social. Em todo o país, no entanto, essas decisões judiciais não têm sido cumpridas. A maioria dos pacientes fica detido em presídio, ocupando vagas, superlotando unidades e pior, sem receber tratamento adequado.
PRISÃO COMO HOSPITAL
É o caso de Dyonathan Celestrino, 25 anos, conhecido como "Maníaco da Cruz". Recentemente, a juíza Cinthia Xavier Letteriello, responsável pela Vara de Família de Campo Grande, decidiu que em Mato Grosso do Sul não há outro local para que ele fique internado, a não ser um presídio. Em decisão proferida no dia sete deste mês, ela contrapõe despacho proferido em novembro pelo juiz Caio Márcio de Britto, da Vara de Execução Penal, que considerou "irregular e ilegal" e exigiu que Dyonathan fosse transferido, com urgência, para um hospital.
Conforme a juíza, o Estado não tem unidades de saúde que possam receber o rapaz, conforme sugere o colega magistrado. Por isso, "não há qualquer outra medida a ser tomada nesta oportunidade, que não a de mante-lo no estabelecimento onde se encontra. Até que nova providência seja tomada pelo estado, a manutenção do interditado naquela ala de saúde é a medida que melhor atende a todos os interesses dos envolvidos – sociedade e interditado – não sendo esta caracterizada como ilegal ou irregular", afirma Letteriello.
Há três anos, a Justiça enfrenta um impasse sobre o que fazer com o rapaz que matou três pessoas em 2008. Desde 2014, Dyonathan foi interditado e está sob internação compulsória, ou seja, é mantido internado para tratamento, por medida de segurança
O cumprimento de medidas de segurança – decisões judiciais que preveem internação a pacientes em conflito com a lei – é o principal ponto de divergência quando o assunto envolve presos psiquiátricos.
O Conselho Nacional de Justiça recomenda aos juízes que a medida seja cumprida na rede pública de saúde, como em residências terapêuticas e unidades do Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Mas, como o assunto é tratado no Código Penal e na Lei de Execuções Penais, a maioria dos magistrados interpreta que os pacientes devem ser enviados ao sistema penitenciário, em particular aos manicômios judiciários, espécies de hospital-presídio.
De forma generalizada, o tipo de tratamento dado a esses infratores não está condicionado ao quadro clínico deles, mas ao crime que cometeram. Uma portaria publicada em janeiro pelo Ministério da Saúde estabelece que cabe ao Sistema Único de Saúde (SUS) acompanhar as medidas terapêuticas aplicadas a infratores com problemas psiquiátricos. O ministério admite que os manicômios judiciários são como prisões e sugere uma política de tratamento dentro dos presídios, já que faltam vagas em hospitais. No entanto, a adesão dos estados à nova política de tratamento a esses infratores é voluntária.
SEM CONCLUSÃO
Em Mato Grosso do Sul, desde de 2013 o Ministério Público Estadual (MPE), por meio da 50ª promotoria de Justiça, investiga a situação. O ponto principal da investigação é justamente a falta de hospitais de custódia para presos psiquiátricos no Estado e o atendimento precário oferecido a eles. O Correio do Estado teve acesso ao documento, são 1693 páginas de um inquérito civil com seis volumes e nenhuma conclusão. Questionada, a promotora responsável pela investigação, Renata Ruth Fernandes Goya Marinho, não se disponibilizou para conceder entrevista.
A Ordem dos Advogados de Mato Grosso do Sul diz que enxerga a situação é preocupante. "Vemos com uma preocupação muito grande, porque não é o recomendado, a gente sabe que o sistema carcerário tem suas dificuldades, mas não é por isso que deve ficar como está. No ano passado, o Mecanismo nacional de Combate a Tortura identificou essa situação dos presos psiquiátricos e houve uma melhoris, mas ainda não é o suficiente", afirma o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/ MS, Christopher Scapinelli.
O médico psiquiátrica Kleber Francisco reforça que é necessário que se tome uma medidas urgente, ou as consequências podem ser ainda mais graves. "A Associação Brasileira de Psiquiatria nunca preconizou um modelo centrado em hospital, mas em várias ferramentas. Ambulatoriois especializados, leitos de hospital. O que a gente deve lutar é para ter hospitais psiquiátricos com tratamentro digno, uma estrutura adequada", diz.
ALTERNATIVAS
A Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (AGEPEN) afirma que, dentro da impossibilidade legal da construção e implantação de hospitais custódia, os estados acabam criando anexos ao sistema carcerário para atender à parcela da população de doentes mentais criminosos. Em dezembro do ano passado, foi inaugurada a ala destinada a presos psiquiátricos, conforme sugestões da 50ª Promotoria de Justiça, Pastoral Carcerária e entidades de Direitos Humanos.
No local, presos passam por atendimentos regulares de psiquiatra, são acompanhados por uma equipe formada por assistente social, psicóloga e enfermeiras, que desenvolvem um projeto psicossocial com os doentes mentais da unidade. Além disso, um profissional de Educação Física, realiza atividades com os custodiados. Para a agência, dentro do possível, o trabalho que vem sendo feito com esses presos doentes está próximo do que deseja a psiquiatria.